O fator justificante que não justifica


“Não somos justificados por nós mesmos. Nem por nossa própria sabedoria, conhecimento, espiritualidade ou obras feitas de todo coração. Mas somente pela fé através da qual o Deus Todo-poderoso justificou todos os homens desde o princípio.” – Clemente de Roma (1Coríntios 32)

Quando li isto senti uma pancada no íntimo. Sempre fui sedento pelo conhecimento teológico. Houve época, aliás, que na igreja me destacava no quesito conhecimento bíblico-teológico. Me tornei um pregador itinerante ainda juvenil. Viajei cidades expondo Bíblia e falando de teologia, "a rainha das ciências", como era conhecida na Idade Média. Preparei sermões para serem usados nos cultos dos lares e, até hoje lembro da sensação de pensar: "A igreja está comentando algo que eu escrevi, cara!". Montei apostilas de diaconato para a igreja. Fui um dos líderes do culto de ensino da igreja. Sim, amigos (as), isso parece o relato de São Paulo aos filipenses, quando ele diz: "Hebreu de hebreus, quanto à Lei, fariseu..." (3:5) Fui ganhando notoriedade, e isso, como São Paulo disse: "O conhecimento traz orgulho" (1Co. 8:3a).

O conhecimento se tornou o fator justificante para mim. Involuntariamente, claro. Eu era um bom cristão por conhecer bem a Bíblia e a Teologia Cristã, pelo menos pensava que assim fosse. Era, inclusive, conhecido como "Enciclopédia Bíblica" pelos pastores da denominação; e por "Almanaque Bíblico" por amigos próximos.  No fundo da alma era gratificante receber aqueles elogios e, como a Escritura diz "o homem é provado pelos elogios que recebe" (Pv. 27:21), então aqueles elogios se tornaram minha luta. 

Não estou dizendo com isso que o conhecimento teológico é ruim. Estou dizendo que por meu descuido subiu à minha cabeça, quando devia curvar em adoração. Incentivo a cada um de vocês a buscarem o conhecimento o quanto puderem. Aliás, não só eu, mas os apóstolos e profetas. Oséias disse: "O meu povo perece por falta de conhecimento. Por rejeitarem o conhecimento, eu os rejeitei como sacerdotes" (Os. 4:6). Pedro disse: "Antes, cresçam na graça e no conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo" (2Pe. 3:18).

O conhecimento me subiu à cabeça, gerou orgulho, cumprindo cabalmente e fatidicamente a constatação apostólica. Então, em primeiro lugar, questionei a Deus. Não conceitos teológicos em primeira instância, mas benesses ausentes. "Sou crente fiel, conhecedor exímio da Bíblia, da Teologia e da História da Igreja e não recebo coisas que pessoas mais ignorantes que eu recebem. Deus, tu és injusto". Percebe-se que o questionamento das benesses trouxe consigo o questionamento teológico. Para os exibidos, o conhecimento teontológico. O conhecimento acerca de Deus Pai. Esse questionamento trouxe sérias e desastrosas consequências. Não porque questionar seja ruim, aliás, como dizia Platão: "Uma vida não questionada não merece ser vivida." Trouxe-me desastres porque era conhecimento sem piedade. Era mero juntar de informações. Novamente para os exibidos, era ortodoxia sem ortopraxia e ortopatia. Era conhecimento sem prática e sentimentos corretos. Era doutrina sem vida. 

Questionei, em segundo lugar, a Igreja. Não que questionar doutrinas, usos e costumes da igreja local seja ruim. Aliás, a Bíblia no-los recomenda fazer isso: "Examinem todas as coisas, retenham o que for bom"(1Ts. 5:21). Os crentes da cidade de Beréia fizeram isso com a pregação dos apóstolos. Eles examinavam as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram de fato como estavam sendo ditas (Cf. At. 17:11). Aquele questionamento foi mais uma tentativa de me impor. Já estava contrariado com Deus, agora eu queria fazer valer na igreja a minha opinião. Graças a Deus que não deu certo! A igreja é do Senhor, ele a lidera. Ele concede pastores e presbíteros. 

Em meio a toda essa reviravolta, uma série de coisas aconteceram que me deixaram bastante atordoado e abatido. Me vi sem chão. Fui obrigado a rever toda minha teologia. Constatei que era deveras legalista, que o conhecimento tinha se deificado. Entendi o quão tentador deve ter sido o gnosticismo para a Igreja nascente. Gnosticismo foi um movimento, presente já no primeiro século da igreja, que enfatizava uma verdade especial elevada que apenas os mais iluminados recebiam de Deus (a gnosis - conhecimento). Eles diziam ainda que a matéria era má, criada por um deus inferior, o Demiurgo. Por último, por mancharem a matéria, negavam também a Encarnação da Palavra e a plena humanidade de Jesus. É contra eles que o apóstolo João escreve seu evangelho e epístolas. É contra eles que Paulo escreve Colossenses. É contra eles que Paulo adverte Timóteo acerca do falso conhecimento (1Tm. 6:20). Se você prestar atenção o gnosticismo ainda ameaça-nos atualmente...

Retomando, nessa reviravolta teológica eu me voltei para o teólogo que "odiava a Deus". A figura enigmática de Martinho Lutero. Claro, que essa confissão foi antes da redescoberta da justificação só pela graça mediante a fé. Foi feita em meio à uma consciência atormentada em busca de alívio, enfim... Comecei devorar os escritos de Lutero e tudo relacionado... Entrei em contato com luteranos confessionais... Seminaristas luteranos... Desejava ter a guinada reformatória de Lutero. Ir de um deus odiado ao Dulcíssimo Salvador. Não pense que eu era neófito na fé, um novato na igreja, um catecúmeno. Tinha 12 anos de caminhada com o Senhor. Me voltei para Lutero na teologia, Schopenhauer na filosofia, Bukowski nos contos, Clóvis de Barros Filho no espectro geral... Tentei viver a vida reconciliada com ela mesma. 

Por fim, uma frase de Lutero encarnou em mim. Ele disse: "Esta é a razão pela qual nossa teologia é certa: Porque ela nos arranca de dentro de nós mesmos e nos coloca fora de nós mesmos - de tal modo que não nos apoiamos nas nossas forças, na nossa consciência, no nosso senso, na nossa pessoa, nas nossas obras; ao contrário, apoiamo-nos naquilo que está fora de nós (extra nos), a saber, na promissão e verdade de Deus que não são ilusórias". [Comentários aos Gálatas, sobre Gl. 4:6, 1531] Assim como Lutero, Clemente de Roma, pai da Igreja, disse que não somos justificamos por nossas obras ou nossa pessoa. Somos justificados por alguém fora de nós. Cristo Jesus, nas palavras de São Paulo, "Se nos tornou nossa justiça" (1Co. 1:30). Clemente arremata: "Não somos justificados por conhecimento". Agora você percebe o peso dessa declaração para mim pessoalmente?

Aprendi a apreciar mais ainda Cristo. Ele se tornou para mim o Dulcíssimo Salvador. Nas palavras de João Calvino,  "somente nele somos tidos por justos, visto que a obediência de Cristo nos é creditada como se fosse nossa". [Institutas, 3.11.23, p. 221-2]

Há alguns dias venho me perguntando - e com essa indagação concluo: "Como posso dispor o conhecimento que Deus me deu, para glorificá-lo e edificar a Igreja, haja vista que na história da igreja houve tantas pessoas mais capazes, sagazes que eu?" Como você, leitor (a) pode edificar a Igreja e glorificar a Deus com o seu conhecimento? Afinal, nas palavras de Pedro: "Cada um exerça o dom que recebeu para servir aos outros, administrando fielmente a graça de Deus em suas múltiplas formas.  Se alguém fala, faça-o como quem transmite a palavra de Deus." (1Pe. 4:10-11) e nas palavras de Paulo: "Se o seu dom é ensinar, ensine" (Rm. 12:7).

Que Deus ajude nós todos que ansiamos conhecimento, que sejamos livres do orgulho do conhecimento mal empregado, que ele se curve diante da presença de Deus. Que nosso conhecimento seja útil para edificação da Igreja de Jesus Cristo ao longo do tempo e do espaço e promova dentre as nações a glória do nome de Deus!


Em Cristo Jesus e sempre nele,



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