"Série Respostas": Em que crê um Cristão Reformado? (Parte I)

EM QUE CRÊ UM CRISTÃO REFORMADO? (Parte I)



Dedico essa série de artigos a um amigo ministerial, que me arguiu com a seguinte indagação: “Em que os reformados creem?” Para não ficar demasiado longo o artigo, organizei o material de forma dividida. Nessa seção de agora trataremos de esclarecer o que é a Tradição Reformada.

Parte I – Definindo a Tradição Reformada: Uma nova cosmovisão

Essa é uma pergunta simples e difícil, já vi muita gente se embananando com ela; em parte, pois tornar-se reformado, na maioria dos casos é aderir a um nova cosmovisão, onde passamos a enxergar as coisas de um modo mais realista. Na maioria dos casos, quando alguém descobre a tradição reformada, sente-se como um neófito, um bebê espiritual.

A tradição reformada, como já disse, é uma cosmovisão. Portanto, a tradição reformada abarca mais do que a doutrina da Salvação, que a maioria conhece pelo acróstico TULIP, ela abordará também áreas como doutrina do Espírito Santo, Interpretação das Escrituras, Liturgia do Culto, Relacionamento Marital, Pais e Filhos, Patrão e Empregado, Música sacra e secular, administração financeira, Vida devocional, vida acadêmica, e por aí vai. Ela não se limita a tão-somente à Teologia.

Essa cosmovisão não é rígida, mas é definida. Há reformados cessacionistas (crê que os dons miraculosos cessaram na era apostólica) e continuístas (esses dons miraculosos [línguas, profecias, curas] continuam hoje); pedobatistas (batizam crianças) e credobatistas (batizam somente adultos); há reformados presbiterianos, anglicanos e congregacionais; Há igrejas reformadas que adotam o governo presbiteriano [também conhecido como governo representativo] na Igreja (a igreja é representada pelo presbitério que a congregação mesmo elege), há igrejas congregacionais (A Igreja tem autonomia na sua forma de governo, como por exemplo, as Igrejas Batistas Particulares), há igrejas episcopais (A forma de governo é centrado na figura do Bispo – como, por exemplo, a Igreja Anglicana). Há reformados que escatologicamente falando são amilenistas (creem que o milênio seja de natureza espiritual – Hernandes Dias Lopes, Mauricio Machado), pré-milenista histórico (creem que Jesus vem antes do milênio e estabelece seu reino na terra, mas que a Igreja passa pela tribulação – John Piper) e há pós-milenistas (creem que a Igreja estabelece o milênio – a era dourada – e Cristo volta ao final dela – Jonathan Edwards; Felipe Sabino), no entanto, há coisas essenciais que todo reformado crê em unanimidade e das quais não abre mão como o dogma da Trindade, Encarnação, Inspiração, Infalibilidade, Inerrância e Suficiência da Escritura, A União Hipostática (Jesus sendo completamente homem e Deus, sem confundir as naturezas e preservando a unidade da pessoa), a morte expiatória de Jesus no calvário, sua ressurreição corpórea e literal ao terceiro dia, sua volta em glória e o juízo final.  No fim das contas, tem mais coisas que nos unem, do que nos divide.

Essa cosmovisão não descarta toda a tradição teológica. Há toda uma tradição que a Igreja Cristã desenvolveu nesses últimos milênios. A proposta é justamente reformar e não descartar; é aproveitar o útil, o que é Bíblico. O Novo Testamento fala de tradição apostólica (II Tessalonicenses 2:15; 3:6; I Coríntios 11:2). Por essa razão, o protestantismo em geral, aceita o credo apostólico (credo dos apóstolos, eu particularmente gosto muito dele), o credo niceno-constantinopolitano (credo de Nicéia, reforçado em Constantinopla), o credo atanasiano (credo de Atanásio – defendendo a Trindade); aceita os sete concílios ecumênicos: (1) Nicéia I – 325dC; (2) Constantinopla I (381dC);  (3) Éfeso (431 dC); (4) Calcedônia (451 dC); (5) Constantinopla II (553dC); (6) Constantinopla III (680dC) (7) Nicéia II (787 dC), mas especialmente os quatro primeiros (Nicéia I, Constantinopla I, Éfeso e Calcedônia) e confissões, tais como as de Ausburgo, Westminster, Batista de 1689, Guanabara (ambas no caso do Brasil) e tantas outras. A tradição reformada bebe bastante dos Pais da Igreja (Agostinho de Hipona, Tertuliano, Irineu de Lyon, Orígenes), dos Apologistas (Justino Mártir, Epístola a Diagoneto, Didaquê), para nós, estes escritos não são canônicos, mas servem como balizadores nos esforços desses teólogos de defenderem a ortodoxia.

Martinho Lutero não desperdiçou toda a tradição apostólica, eis o que ele disse em seu tratado contra os anabatistas: “Não agimos tão fanaticamente quanto os Schwärmer. Não rejeitamos tudo que esteja sob o domínio do papa. Porque assim, deveríamos rejeitar também a Igreja Cristã[1]”. Obviamente, Lutero estava consciente de que a tradição não tem a palavra final em assuntos de fé, pois disse: “Eventualmente, um concílio pode errar. Nem a Igreja nem o Papa podem estabelecer artigos de fé, eles devem vir das Escrituras”.[2] Lutero estava cônscio de que a Escritura tem proeminência sobre a Tradição. Por uma questão de tempo e espaço, omiti o que a tradição fala dos catecismos (grego: Instrução).

Essa cosmovisão tem seus “balizadores”. São três os princípios unificadores de todos os cristãos: “Somente a Fé, Somente a Graça e Somente a Escritura”. A tradição reformada, na defesa da ortodoxia, estabeleceu cinco “somentes” que são: “Somente Deus a Glória, Somente Cristo, Somente a Fé, Somente a Graça, Somente a Escritura”. São os famosos “cinco solas da Reforma”. Observe que a tradição reformada manteve os três princípios unificadores da Reforma.

Essa cosmovisão afeta nosso “viver” positivamente. A tradição reformada, especialmente em Lutero que desenvolveu a ideia do Coram Deo (Diante de Deus), onde não há mais divisão entre sagrado e secular, o que fazemos tanto na Igreja quanto no trabalho está diante de Deus. Calvino, nessa mesma linha de raciocínio desenvolveu a idéia da “Graça Comum”, onde Deus distribui dons, talentos, habilidades a todos os homens, mesmo aos ímpios (Mateus 5:45). Por essa razão, o cristão reformado sente-se livre para, se quiser,  ouvir musicas que não sejam apenas sacras, pois reconhece que há homens dotados por Deus para glorificá-lo nesse meio, um exemplo do que digo é a música Yahweh do U2. Portanto, graças à “Graça Comum” há homens maus que fazem coisas boas, apesar de não serem regenerados, no entanto, essas boas obras não dão salvação, pois são inaceitáveis a parte de Cristo, diante de Deus. Os reformados geralmente apreciam muito o vinho, não se embriagam visto que é terminantemente proibido (Efésios 5:18) e fere o fruto “domínio próprio” (Gálatas 5:22-23). 

A “Graça comum” no conceito reformado nos possibilita a enxergar a boa mão de Deus em todas as coisas boas que nos acontecem. A roupa que vestimos, o alimento que comemos, a música que ouvimos, a bebida que bebemos etc. Passamos a entender que não temos uma roupagem para o culto e uma para o dia a dia, temos uma única roupagem. “O que somos está manifesto diante de Deus” (II Coríntios 5:11a) e não há ninguém que se esconda dele (Hebreus 4:13), seja na Igreja ou em Casa, o que somos, fazemos, pensamos, Deus o sabe, então não há porque dicotomizar entre sagrado e profano. O que eu sou na Igreja devo ser em casa e vice-versa.

A cosmovisão reformada tem vários protagonistas. O termo reformado é preferível a Calvinista, visto que a Teologia Reformada não provém estritamente de Calvino.[3] Zwínglio contribui muito ativamente com o desenvolvimento do Lema “Somente a Deus” a glória e Lutero desenvolve os quatro primeiros “Solas”[4]. De fato, houve reformadores e reformas em diferentes localidades e diferentes épocas do globo. Lutero e Zwínglio foram contemporâneos e chegaram a conclusões semelhantes de modo distinto, havia também Ecolampádio, Martin Bucer, Phillip Melancton, João Calvino, Thomas Cranmer, Menno  Simons Baltassar Hubmaier, Guilherme Farel e tantos outros

Para concluirmos então, repassemos o que foi dito até aqui: Vimos que 1) A tradição reformada, como já disse, é uma cosmovisão; 2) Essa cosmovisão não é rígida, mas é definida; 3) Essa cosmovisão não descarta toda a tradição teológica; 4) Essa cosmovisão tem seus “balizadores; 5) Essa cosmovisão afeta nosso “viver” positivamente; 6) A cosmovisão reformada tem vários protagonistas; e nas próximas seções trataremos mais detalhadamente no que os reformados creem e confessam, no próximo artigo trataremos da Soteriologia Reformada. A doutrina da Salvação na perspectiva reformada.

RECOMENDAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS:

1.      ANGLADA, Paulo, Calvinismo: As antigas Doutrinas da Graça – Ed. Puritanos, Belém 2009. 2 edição.

2.      SHELLEY, L. Bruce, História do Cristianismo ao Alcance de todos: Uma narrativa do desenvolvimento da Igreja Cristã através dos séculos; São Paulo; Shedd Publicações, 2004.

3.      OLSON, Roger E.  História da Teologia Cristã: 2.000 anos de tradição e reformas, São Paulo, Editora Vida, 2001.

4.      MAIA, Herminsten Fundamentos da Teologia Reformada, São Paulo, Mundo Cristão, 2007 (Coleção Teologia Brasileira)

5.      HURLBUT, Jesse Lyman, (1843-1930) História da Igreja Cristã, 1 Edição Rev. e Atual. São Paulo, Editora Vida, 2007.





[1] TIMOTHY GEORGE, Teologia dos Reformadores, p. 82
[2] BRUCE L. SHELLEY, História do Cristianismo ao Alcance de todos, p. 269
[3] ALISTER, MCGRATH, Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica, p. 99

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