Série "Lei e Evangelho": Introdução
A CORRETA DISTINÇÃO ENTRE LEI E EVANGELHO (I)
O EVANGELHO NO ANTIGO TESTAMENTO
Teologicamente
falando, a distinção entre Lei e Evangelho é particularidade da tradição
luterana e Lutero falou muito sobre ela. Uma das coisas que ele enfatizou é que
o evangelho não é coisa exclusiva do Novo Testamento. O evangelho pode e está
presente em passagens do Antigo Testamento.
Algumas
passagens do Antigo Testamento que são evangélicas podem ser vistas em Gênesis
3:15; Isaias 9:6; 35:5-6; 53:1-12; Salmo 16:10; etc. Além das prefigurações e
tipos nos patriarcas[1],
no cordeiro da páscoa de Êxodo[2],
nos milagres da peregrinação no deserto (água que brota da rocha, a serpente de
bronze)[3]
e nos profetas[4].
O evangelista
Lucas informa que João Batista pregava o Evangelho (3:18):
E assim, com muitas outras
exortações, João anunciava o
evangelho ao povo (NAA)[5].
É consensual
na Bíblia que João foi um profeta que pertenceu à era do Antigo Testamento;
Jesus mesmo testifica disso. Ele disse (Lucas 16:16 – NAA):
A Lei e os Profetas[6]
duraram até João; desde esse
tempo o evangelho do Reino de Deus vem sendo anunciado, e todos se esforçam para entrar nele.
Sendo assim
inferido que a própria Bíblia que evangelho não é coisa exclusiva do Novo
Testamento. Aliás, esse ensino tão comum no evangelicalismo brasileiro remonta
aos ensinos do herege Marcião; que defendia a idéia de que o Deus do Antigo
Testamento é mau e criador da matéria, já o Deus do Novo Testamento e Pai de
Jesus é criador do espírito humano é bom. Por isso Marcião rejeitava a
encarnação do Verbo Divino. Rejeitava Todo o Novo Testamento com exceção de 10
cartas de Paulo e o Evangelho de Lucas (evangelho lucano) mutilado.
O próprio
Paulo demonstra em Atos 13:32 que o Evangelho fala das promessas dadas ainda no
Antigo Testamento.
Sabemos que o
Evangelho está no Antigo Testamento, mas, afinal, o que é Evangelho?
EVANGELHO: DEFININDO O TERMO
O termo grego
é εὐαγγέλιον (euanggelion). No grego clássico, o termo vem da palavra αγγελος
(anggelos) que significa “mensageiro”.
NO período helenístico podia significar ainda “aquele que anuncia oráculos”. O verbo traz o sentido de um
mensageiro de alegria. O termo εὐαγγέλιον é propriamente uma mensagem de vitória. Essa mensagem
geralmente era dom dos deuses para os homens; os quais, depois de receberem a
mensagem, ofereciam sacrifícios aos deuses.
O termo passou a adquirir o sentido de boas notícias ainda no período
helenístico.
No período que
compreende o nosso Antigo Testamento, quando este foi traduzido para o grego
(Septuaginta – LXX), o termo foi empregado para traduzir a palavra hebraica bissár que significa “anunciar, contar,
publicar”. Esse é o verbo que se emprega em Salmo 40:9; 68:11; 96:2; Isaías
41:27; 52:7 para indicar a vitória universal e escatológica de Deus.[7]
Em português, em todas estas passagens, os tradutores verteram para “boas
novas”. Para a mente do Antigo Testamento, o mensageiro é aquele que com sua
anunciação já inaugura o reino de vitória do Rei de Israel. É uma palavra que
traz já o seu cumprimento. Aqui, os judeus gregos usaram o termo apostolos: Um mensageiro que carrega a
palavra que inaugura uma nova era.
O judaísmo
rabínico mantinha viva a crença de que o Rei de Israel enviaria seu apostolos. Esse enviado seria o próprio
Messias. Quando chegasse, o Messias inauguraria a era da salvação.[8]
O termo ευαγγελιζονται
aparece 52x no Novo Testamento. Ele significa “trazer boas noticias”,
geralmente a partir do Antigo Testamento. εὐαγγέλιον ocorre 60x só nos escritos
de Paulo e tem sido sugerido que Paulo foi quem estabeleceu o uso que temos do
termo a partir do Novo Testamento. Em Paulo, o termo tem o sentido das boas
novas nas quais Deus agiu em favor do
mundo através da encarnação, morte, ressurreição, assunção de Jesus Cristo.
Em resumo, evangelho é o anúncio de boas
notícias: Deus salvou o mundo através da encarnação, morte, ressurreição e
assunção de Jesus Cristo.
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Só a partir do
século 2 d.C, os quatro primeiros livros do Novo Testamento receberam a
designação de “Evangelhos” e isso porque eles retratavam a boa notícia de que
Deus esteve entre nós. Deus tabernaculou entre nós.
Sabemos que o
Evangelho, isto é, a boa notícia de Deus esteve presente desde o A.T. e sabemos
ainda que o termo significa “boas notícias, boas novas”, mas, afinal, onde
entra essa distinção com a Lei?
SALVOS PELO QUÊ: LEI OU EVANGELHO? A
PERSPECTIVA PAULINA
Paulo usa o
termo Lei (grego nomos) de maneira
muito peculiar.
Ele designa
com isso em primeiro lugar, toda a Palavra de Deus que condena o homem:
ROMANOS 3:19-21: “Ora, sabemos que tudo o que a Lei diz é
dito aos que vivem sob a Lei, para que
toda boca se cale e todo mundo seja culpável diante de Deus. Porque ninguém
será justificado diante de Deus por obras da Lei, pois pela Lei, vem o pleno
conhecimento do pecado.
Paulo
prossegue para o segundo uso do termo Lei: Mandamentos
1Timóteo 1:8-11: Sabemos que a lei é boa, se alguém se
utiliza dela de modo legítimo, tendo em vista que não se promulga lei para quem
é justo, mas para os transgressores e rebeldes, para os ímpios e pecadores,
para os iníquos e profanos, para os que matam o pai ou a mãe, para os
homicidas, para os que praticam a imoralidade, para os que se entregam a
práticas homossexuais, para os sequestradores, para os mentirosos, para os que
fazem juramento falso e para tudo o que se opõe à sã doutrina, segundo o
evangelho da glória do Deus bendito, do qual fui encarregado.
O terceiro uso
que Paulo faz do termo nomos é a
tentativa humana de se autojustificar diante de Deus e ser salvo por obras. Ele
diz:
Gálatas 5:4 – Vocês que procuram justificar-se na Lei
estão separados de Cristo; vocês caíram da graça de Deus.
Em todo
Gálatas, Paulo combate a tendência judaizante. Essa tendência insistia em dizer
que para ser salvos deveríamos guardar os preceitos cerimoniais de Moisés. Essa
foi a primeira controvérsia que demandou um concílio da igreja em Jerusalém. Em
Atos 15:2, os judaizantes diziam: “Se não guardarem os costumes de Moisés não
poderão ser salvos”. Os apóstolos responderam à isso. Pedro, no referido
concílio, disse: “Cremos que tanto eles quanto nós, somos salvos pela graça do
Senhor Jesus” (At. 15:11).
Essa tentadora
ação de procurar salvação na Lei é o que se chama de ‘tendência judaizante’.
Foi a ela que Pedro reagiu enfatizando a graça. Ela também pode ser chamada de
legalismo.
Em Gálatas,
Paulo diz que para viver para Deus é preciso morrer para a Lei (2:19,21), Paulo
diz que a Lei não concede o Espírito (3:2,5); Paulo diz que quem quer estar sob
a influência salvadora da Lei está, na verdade, sob condenação (3:10-13); a
função da Lei é ressaltar o pecado (3:19); A Lei era nosso tutor até Cristo
(3:24)[9];
Paulo diz que os que são guiados pelo Espírito não estão mais debaixo da tutela
da Lei (5:18) e arremata dizendo que nem mesmo aqueles que querem cumprir a lei
conseguem cumprir a lei (6:13) e, assim, então caem na palavra condenatória de
Deus.
OS TRÊS CONCEITOS DE LEI EM PAULO: A PALAVRA CONDENATÓRIA DE DEUS; OS MANDAMENTOS DADOS NO SINAI; E A
TENTATIVA DE SER SALVO FAZENDO BOAS OBRAS.
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Temos a Lei dada no Sinai e então tentamos obedecê-la para
sermos salvos e fracassamos (Gl. 6:13) e por isso somos condenados (Rm.
3:19-21)
COMPREENDENDO PAULO: A PERSPECTIVA LUTERANA
Lutero e os luteranos posteriores abraçaram essa distinção
paulina em sua dogmática. E como Carl E. Trueman ressalta em Entre Wittenberg e Genebra: A Teologia
Luterana e Reformada em diálogo (p. 72)
A primeira coisa que precisa ficar claramente entendida é que a
antítese entre lei e evangelho não consiste em que a primeira ordena e o outro
promete. A lei e o evangelho oferecem promessas; a diferença é que as promessas
da lei são condicionadas à obediência, enquanto o evangelho é incondicional por
causa da vida e obra de Jesus Cristo.
Por essa razão, Lutero pôde falar que Deus tem duas vozes
para a humanidade. A voz da Lei (Ira) e a voz da Graça (Evangelho) e este é o
assunto que desdobra dessa distinção e ao qual nos desdobraremos a seguir.
[1]
Gênesis 22:1-14
[2]
Êxodo 12:46 ; João 19:36
[3]
1Coríntios 10:1-10 ; João 3:14-21
[4] Atos
3:22
[5]
Nova Almeida Atualizada (2017)
[6]
Designação típica para o Antigo Testamento nos dias de Jesus (Cf. Lucas 24:44;
Mateus 5:17)
[7]
Esse verso (Is. 52:7) é amplamente citado no N.T. (Rm. 10:15; Ef. 6:15)
[8]
Hebreus 3:1 diz que Jesus é o apostolos de
Deus.
[9] A
NAA traz “Guardião”.
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