Um cristianismo além da Reforma
Aproximamo-nos
de 502 anos de Reforma Protestante e tem muita gente que acha que esse evento é
o suprassumo do cristianismo. O que proponho a escrever hoje é sobre um cristianismo
além e anterior à Reforma.
A
Reforma é, sem dúvida, um evento importantíssimo, porém, estritamente
Ocidental. O cristianismo oriental foi pouco afetado por esse evento. Essa é a
razão pela qual digo que há um cristianismo além da Reforma. Comecemos pela
origem: O Cristianismo antigo, o cristianismo apostólico.
I.
O Cristianismo
apostólico
Mosaico do Cristo Pantocrator (Cristo todo-Poderoso) |
Quando
o Império Romano – na pessoa de Constantino e Licínio – promulgou o Édito de
Milão em 313 d.C. concedendo tolerância religiosa a todos no Império, a Igreja
assumiu muito da forma de governo romana. Essa forma romana de poder deu origem
à centralização da igreja na pessoa do bispo diocesano. O bispo diocesano era
alguém responsável por todas as igrejas em uma determinada localidade. Nessa
época, cinco bispos diocesanos se levantaram acima dos demais e foram
considerados patriarcas. São eles: O bispo de Roma, o bispo de Constantinopla,
o bispo de Alexandria, o bispo de Antioquia e o bispo de Jerusalém.
Nessa
época, houve o início da separação do Cristianismo. Era uma época de
desenvolvimento de dogmas. Então Nestório, patriarca de Constantinopla, foi
considerado herege por ensinar que em Cristo havia duas pessoas e não duas
naturezas. Surgiu assim a igreja nestoriana na Síria e na Pérsia.
Um
segundo momento de divisão no cristianismo se dá – ainda nesse período – com o
movimento monofisista. O movimento monofisista ensinava que em Jesus havia uma
única natureza – a Divina – ao contrário de duas – a divina e a humana – como ensinava
a fórmula de Calcedônia. O movimento monofisista (monos única physis natureza)
deu origem à três igrejas: Armênia – que recusava a aceitar a fórmula calcedoniana
– Jacobita (surgida na Ásia Menor, Síria, Mesopotâmia – existente até agora,
mas enfraquecida) e a igreja Copta (composta por quase todos os cristãos não
gregos residentes no Egito).
Essas
não são as únicas cisões no cristianismo antigo. Há ainda a controvérsia
donatista. Aurélio Agostinho se opôs a Donato – ambos bispos – porque um
defendia que aqueles que renegavam a fé em tempos de perseguição não deviam ser
restaurados à comunhão da Igreja e que os sacramentos administrados pelos traidores
não era válido (Donato) e o outro defendia que a virtude do sacramento não está
em quem o administra, mas no Nome do qual é administrado então mesmo os
sacramentos administrados por traidores era válido (Agostinho).
Três
dos cinco patriarcas caíram ante os árabes. Restando apenas dois patriarcados:
Romano e Constantinopolitano. Um reconhecia a supremacia papal (Roma) e outro
não (Constantinopla). O patriarcado romano cresceu vertiginosamente graças ao
movimento missionário. Então em 864 dC,
houve outro cisma. Agora a igreja romana e a igreja grega se separam. Três
fatores principais contribuíram para tanto:
a.
Língua – A
igreja romana falava latim e a igreja oriental falava grego. Um tinha sede em
Roma e outro em Constantinopla.
b.
Dois governos – O
império foi divido antes em Império oriental e ocidental. Quando o Império
Ocidental caiu e os governantes Orientais quiseram governar o Ocidente, o bispo
romano recusou tal façanha e coroou Carlos Magno como seu Imperador – o Imperador
do Sacro Império Romano Germânico.
c.
A pretensão papal romana – A igreja ortodoxa jamais reconheceu o Papa romano.
Quando em 1054, o patriarca ortodoxo condenou a igreja romana pelo uso de pão
com fermento. Então os emissários romanos colocaram uma bula de excomunhão no
altar da Igreja de Santa Sofia e o Patriarca Ortodoxo respondeu com uma bula de
excomunhão para a Igreja Romana. Essa excomunhão mútua só foi sanada em 7 de
Dezembro de 1965 pelo papa Paulo VI e pelo patriarca Atenágoras.
Por
essas razões não devemos julgar que a Igreja Romano foi sempre o cristianismo
todo. E mesmo dentro do cristianismo ocidental houve cismas.
II.
O Cristianismo
Ocidental ou Romano
Entre
1309-1417 houve dois movimentos que enfraqueceram muito o cristianismo
ocidental. São eles: O cativeiro
babilônico da Igreja e o Grande Cisma. O cativeiro babilônico foi uma
mudança local de autoridade papal para a França. O Grande Cisma foi que houve três
papas simultaneamente. Um Avinhão, outro em Roma e outro eleito pelo concílio
de Pisa em 1409. O concílio de Constança depôs dois destes papas e elegeu
Martinho V, que foi reconhecido por toda a igreja.
Nesse
momento histórico surge o anseio por Reforma na cabeça e nos membros. Uma
reforma que atinja o papa e o povo. Aqui entra o conciliarismo. A tentativa de estabelecer concílios com autoridade
superior ao papa. Se desse certo o movimento conciliarista seria a
descentralização do poder hierárquico do papa. Não é preciso dizer que o movimento
conciliarista foi reprimido com força total pelo papado.
A
esta altura, surgem personagens já conhecidos pelos cristãos protestantes. João
Huss e João Wycliffe. Eles são os precursores do movimento reformista do século
16. Desidério Erasmo ou Erasmo de Rotterdam também tem papel chave nesse evento
singular ocidental chamado reforma.
Anos
antes da Reforma alemã, o alto preço e as colheitas escassas no sul da Alemanha
fizeram com que explodisse o ódio em desesperadas rebeliões – que lembrar-nos-á
a revolta dos camponeses de 1525.
Eis
o recorte histórico que prepara o caminho para falarmos então da Reforma Alemã
ou Luterana.
III.
A Reforma
Luterana
Reforma
luterana porque há vários tipos e escolas oriundas da Reforma Protestante ou
Luterana. Há a Reforma Inglesa ou Anglicana. Há a Reforma Escocesa ou Presbiteriana.
Há a Reforma Radical ou Anabatista ou ainda rebatizadora.
A
figura central deste momento é Martinho Lutero. Nascido em 1483 e morto em 1546.
Nascido e morto em Eisleben, sepultado em Wittenberg. Marido de Catarina Bora.
Foi monge agostiniano. Durante certo tempo foi pastor na igreja do Castelo em
Wittenberg. A principal contribuição pelo qual a igreja luterana é conhecida
hoje é a doutrina da justificação apenas pela fé. Segundo Lutero este é o
artigo pelo qual a igreja se mantém de pé ou cai.
A
proposta por Reforma é interessantíssima. Reforma pressupõe um edifício antigo.
A primeira geração de reformadores entendeu estar em ligação com a igreja
antiga através dos Pais da Igreja – principalmente Agostinho. Então
se quisermos realmente honrar o espírito protestante devemos, antes de tudo,
estudar o cristianismo antigo. Primeiro porque nos mostrará onde os enganos
adentraram. Segundo porque nos mostrará que a Reforma nos conclama a
reformarmos a Igreja sempre. Afinal, a Igreja Reformada deve estar sempre sendo
reformada. Pois a Reforma não foi um movimento inerrante. Há muita coisa que
Lutero fez ou pregou que é digno de reprovação assim como qualquer outro
reformador.
A
herança da igreja antiga não é exclusividade da igreja apostólica romana. O
credo apostólico não é exclusividade da liturgia romana. Os Pais da Igreja não são
exclusividade da igreja romana. Eles são nossos também. A
maioria das práticas ‘estranhas’ de Lutero tem seu pano de fundo nos Pais. Por
exemplo, a regeneração batismal. Lutero acreditava que o batismo regenerava a
alma. A regeneração não era em virtude do próprio ato, mas em virtude exclusiva
da Palavra. Se lermos Irineu, discípulo de Policarpo, ele diz: Os homens desta classe (gnósticos) foram instigados por Satanás a negar o batismo
o qual é a regeneração de Deus. Eles acreditavam, por exemplo, que o
batismo é a fonte da qual fala Zacarias 13. Justino de Roma escreveu: Não há outra maneira, senão só esta:
Conhecer a Cristo e ser levado a fonte da qual fala o profeta para a remissão
dos pecados e desde esse momento em diante viver nossas vidas sem pecado.
Eles
estavam sendo bíblicos em suas colocações. Se lermos Atos 22:16 vemos que Ananias diz a Paulo: “Levante-se, recebe o batismo e lave seus
pecados invocando o nome dele”.
Em
1Pedro 3:21, o apóstolo escreve: O batismo, que corresponde a isso, agora também
salva vocês, não sendo a remoção das impurezas do corpo, mas o apelo por uma
boa consciência para com Deus mediante a ressurreição de Jesus Cristo.
Pedro
coloca a salvação mediante a água na época de Noé (verso 20) e o batismo (v.
21) em completa analogia.
A
grande proposta deste texto, portanto, é que levantemos nossos olhos além da
Reforma e olhemos para a multiforme graça de Deus espalhada na Cristandade. Não
só no círculo ocidental. Mas nos Pais, nos Gregos, Nos movimentos separatistas.
Não estou dizendo que devemos abrir mão dos nossos pressupostos teológicos.
Estou dizendo que há mais cristianismo além dos nossos arraiais. Só esse
conhecimento salutar amenizaria muito a disputa entre arminianismo e calvinismo. Acabaria com as “excomunhões” de
calvinistas para arminianos, de credobatistas para pedobatistas, de
cessacionistas para continuístas. A proposta deste texto é lembrar que antes de
reformados somos cristãos. Antes de pedobatistas somos cristãos. Antes de
cessacionistas somos cristãos. Antes de históricos somos cristãos. Somos
cristãos! E como Pedro diz: Se sofrer
como cristão, não se envergonhe; pelo contrário, glorifique a Deus por causa
disso. (1Pedro 4:16).
Será
que nossos pressupostos teológicos glorificam a Deus com o nosso nome de
cristãos? Será que relembrando a data das tão aclamadas 95 teses nos tornamos
melhores cristãos? Que no próximo 31/10 possamos lembrar que antes de tudo,
somos um corpo, partindo um pão, servindo um Senhor, tendo uma só fé, um só
batismo. Somos de Cristo, somos cristãos!
Deus
nos abençoe!
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