Teologia em crise

Começo resguardando que não estou falando da Teologia da Crise de Karl Barth, Emil Brunner e Reinhold Niebuhr, que também é conhecida como Neo-Ortodoxia que tem, sim, seus pontos positivos. Inicio o meu texto apropriando-me de um ponto da Teologia Existencialista de Kiekergaard que reaparece na Teologia da Crise de Barth que é justamente o fato de que "Deus confronta a pessoa em crise, à parte do esforço e da razão humanos" (CAIRNS, 2008, p. 487). Em suma, Deus se revela no momento do "pega para capar". Eu me lembro de pelo menos dois exemplos de revelações divinas assim. O primeiro é o caso de Aurélio Agostinho, bispo em Hipona, que teve uma vida turbulenta na busca pela Verdade. Ele foi educado como cristão, mas tornou-se maniqueísta; depois, descontente com o maniqueísmo, tornou-se amante da astrologia; depois, desiludido com a astrologia avança mais um passo e agora é cético; um passo antes de sua conversão, ele se torna  neo-platônico. Ele é, com razão, um filósofo cristão. Durante esse peregrinação em busca da Verdade e sendo já professor de retórica em Milão, ele entra em contato com Ambrósio, bispo na cidade e alguém de prestígio. Agostinho começa a ir ouvir suas homilias a fim de analisar a retórica do Bispo Ambrósio. A pureza do Evangelho vai entrando nas veias de Agostinho; mas não pensemos que a conversão de Agostinho foi fácil e sem luta. Herman Hanko descreve a conversão de Agostinho como segue:

Obstinado em buscar a verdade fora do seu único santuário, agitado pelas ferroadas da sua consciência, vinculado pelo hábito, atraído pelo medo, subjugado pela paixão, tocado com a beleza da virtude, seduzido pelos encantos dos vícios, vítima de ambos, nunca satisfeito em seus falsos deleites, lutando constantemente contra os erros da sua seita e os mistérios da religião, um infeliz correndo de pedra em pedra para escapar do naufrágio, ele fugiu da luz que o perseguia - Tal é a pintura pela qual ele mesmo descreve seus conflitos nas suas 'Confissões’.

À luz dessa luta interna e ferrenha, Agostinho tem um lampejo de luz. Ele está em algum jardim. Ele ouve vozes de algumas crianças cantando sua canção infantil. “Tolle lege”, isto é, toma e lê. Ele tem em mãos a epístola de Paulo aos Romanos. Ele abre à esmo. Encontra a passagem de Romanos 13:13-14 que mudaria sua vida para sempre e, consequentemente, a vida da cristandade. Agostinho teve, por assim dizer, uma conversão no meio da crise. A Teologia robusta de Agostinho nasce no meio da crise e se desenvolve posteriormente em meio a conflitos com o Donatismo, Pelagianismo e o próprio Maniqueísmo. A Teologia de Agostinho nasce, desenvolve e atinge seu auge na crise. Seu tratado De Civitate Dei (A Cidade de Deus) nasce na iminência da Queda do Império Romano no Ocidente. Agostinho, portanto, tem muito a nos ensinar em momentos de crises espirituais e terrenas. Ele é o primeiro exemplo.

O segundo exemplo é Martinho Lutero. Ironicamente, monge Agostiniano em Erfurt, Alemanha. Nascido no dia 10 de Novembro de 1483, é batizado no dia de São Martinho e recebe o nome do santo. Seu pai era um minerador que atingiu alguma posse nas minas. Sua mãe, uma dona de casa que educou o menino com alguma religiosidade. Os planos familiares para Martin Luder (ele que transforma seu nome posteriormente) era que ele fosse advogado. Seu pai investiu algum recurso para isso. A vida de Lutero não foi fácil nesse intervalo. Ele passou um tempo com os Irmãos da Vida Comum em Magdeburgo. Depois foi enviado à Eisenach, onde algumas vezes, passava fome e cantava nas ruas esperando que alguém o alimentasse. Úrsula Cotta o toma como seu filho nesse períodoo e trata do rapaz. Em 1501, entra na Universidade de Erfurt. É no trajeto da Universidade para a casa que temos o episódio de Stotternheim. Era 2 de Julho de 1505. Lutero vivenciou uma terrível tempestade com raios e trovões, ele clamou então por Santa Ana, prometeu tornar-se monge se fosse salvo. Seu pai, Hans Luder ou Luther, chamou esse incidente de “tramóia do Diabo”. No dia 18 de Julho de 1505, Lutero ingressa no Convento dos Eremitas Agostinianos. Nessa época dois dos irmãos de Lutero haviam morrido repentinamente de peste. Pouco antes da Páscoa de 1507 é ordenado sacerdote. Celebra sua primeira missa em 2 de Maio de 1507. Wachholz (2010, p. 51) diz: “O convento, lugar escolhido para buscar a paz interior, inquietava ainda mais sua alma”. Shelley (2018, p. 310) transcreve uma fala de Lutero: “Eu não amo Deus! Eu o odeio!”. Eis um sacerdote em crise! Ensinava ao povo os sacramentos, mas odiava o Deus que pregava.

Esse era o primeiro de muitos conflitos. Em 1510, ele foi enviado pelo vigário geral da Ordem, Johannes Von Staupitz, a uma viagem oficial a Roma, onde Lutero tem uma crise e se pergunta: “Quem sabe se tudo isso é verdade?” (LAWSON, 2013, p. 27). Estudante de Teologia, sacerdote ordenado e em crise, quem diria Lutero!? Não pára por aí. Quem sabe a história de Lutero sabe dos Anfechtugen ou as crises espirituais que formam o teólogo. Para Lutero, não é lendo, nem especulando que se torna teólogo, mas vivendo e morrendo. Lutero lidou com crises espirituais durante toda sua vida e morreu planejando escrever um livro sobre o Anfechtung.

Foi essa frase de Lutero transcrita por Shelley que me levou à estudar a vida de Lutero. Foi essa frase que me fez apaixonar pela História da Igreja. Vivi um período em meados de 2011 no qual passei a odiar a Deus. Era mês de Abril. Aliás, coincidência? Não. Escrevo porque vejo que eu tô no mesmo cruzamento que estava em 2011. E se o Reformador tomou minhas mãos e me conduziu passo a passo a uma reorganizada teológica, acredito que fará novamente. Não só ele, mas agora em sua companhia, Tomás de Aquino, Agostinho, Charles Spurgeon, C. S. Lewis, e tantos outros... O que será da minha Teologia ou de mim após essa turbulência eu não sei. Quanto tempo durará? Não sei também. Vamos enfrentar o olho do furacão mais uma vez! E como dizem os profetas chamados Racionais: “O que tiver de ser será”. Só sei que Deus parece gostar de se revelar no redemoinho, na crise, no Anfechtung. E quem viver, verá!

_____________________________________

CAIRNS, Earle Edwin O Cristianismo através dos Séculos: Uma história da Igreja Cristã, trad. Israel Belo de Azevedo, Valdemar Kroker, 3ª Ed. São Paulo, Vida Nova, 2008.

WACHHOLZ Wilhelm História e Teologia da Reforma: Uma Introdução, São Leopoldo, Sinodal, 2010.

SHELLEY, Bruce L. História do cristianismo : uma obra completa e atual sobre a trajetória da igreja cristã desde as origens até o século XXI / Bruce L. Shelley ; tradução Giuliana Niedhardt. — 1. ed. — Rio de Janeiro : Thomas Nelson Brasil, 2018.

LAWSON Steven J., A Heróica Ousadia de Martinho Lutero, Steven J. Lawson, São José dos Campos, SP, Fiel, 2013 (Um perfil de homens piedosos).

Comentários